Por Luiz Sayão
Durante muitos anos em minha vida tenho atuado no campo teológico. Tenho lecionado teologia bíblica, sistemática, exegese, línguas originais, teologia prática entre outras disciplinas por mais de 30 anos. Dei aulas em quase todos os continentes do mundo, fui diretor de seminário e escrevi artigos e livros na área. Algumas dessas reflexões teológicas foram inclusive traduzidas para outras línguas e tiveram desdobramentos em ambientes distantes e remotos. Todavia, preciso confessar: é muito difícil ensinar teologia! Alguns dos alunos parecem não interagir bem com o conteúdo a ser tratado. Outros procuram apenas um diploma que lhes dê reconhecimento. Uma boa parte dos estudantes parece estar cumprindo uma obrigação, uma espécie de passo necessário para uma almejada posição. Chega a ser frustrante.
De fato, a caminhada da igreja é lenta em seu labor teológico. Observa-se a fragilidade de tanta gente quando se confirmam “enfermidades teológicas” no contexto eclesiástico. Temos de tudo: tradicionalismo irrefletido, sectarismo ingênuo, misticismo desenfreado, obscurantismo acadêmico, apego a modismos intelectualistas, atitude serviçal a várias ideologias, aprisionamento a posturas sistemáticas limitadas e até fanatismo perigoso. É um desafio! Apesar de tudo, a tarefa vale a pena e tem seus frutos, alguns extraordinários!
Todavia, para a minha surpresa, repentinamente comecei a perceber um progresso teológico impressionante nas últimas semanas. Finalmente, parece que a teologia vai decolar. A razão da minha esperança: senhoras e senhores, quero apresentar a todos: a Teologia da Epidemia. E, agora, com vocês, o Dr. Coronavírus. Diante do meu fracasso como professor de teologia, passo a palavra ao nosso incomparável professor. O grande mestre atual da teologia tem larga experiência internacional, com uma jornada transcultural invejável, conhecendo quase todas as culturas do mundo, possui perfil flexível, adaptando-se a todo e qualquer contexto, possui enfoque democrático, estando presente em toda e qualquer comunidade, sem fazer distinção entre as pessoas. Onde ele passa, o celebrado doutor deixa sua marca de transformação, trazendo profunda reflexão dos ambientes em todos os aspectos. Os desdobramentos na área de espiritualidade foram os maiores dos tempos recentes. Incrível!
Deixando o currículo e a trajetória do ilustre mestre já apresentado, vamos ao conteúdo que se tornou o seu legado para esta geração. O que é que temos aprendido nessa Teologia da Epidemia?
Desde o alvorecer do humanismo e, mais recentemente, no iluminismo, o secularismo nos trouxe uma antropologia romântica e frágil, sugerindo com muita ingenuidade a bondade da natureza humana. O Dr. Corona nos leva diretamente de volta à Reforma e ao seu entendimento da teologia paulina, revelando aquilo que ficou conhecido como Depravação Total do ser humano. É impressionante ver como em plena pandemia, tanta gente tem se aproveitado para enganar os outros, aproveitando-se inclusive politicamente do momento dolorido; a ausência de compaixão e os interesses escusos parecem nos confirmar que nos mais difíceis momentos, o ser humano, pecador e perverso, expressa ainda mais suas inclinações terríveis. Em muitos ambientes, tem havido até mesmo a tentativa de controlar e dominar de modo injusto e perigoso o povo comum. Há um certo flerte com o totalitarismo, o fascínio da escravização do próximo. Quanta ingenuidade do sonho iluminista! Que lição descobrimos em meio à crise: esse outro vírus é ainda mais perigoso e letal. Com razão, o apóstolo Paulo detectou essa condição lamentável da natureza humana:
Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. (Rm 7.18)
Como muitas vezes se reconhece, para tanta gente, o silêncio inspira espiritualidade profunda. Nos últimos dias, o barulho do planeta diminuiu. Está mais fácil meditar e orar. Até a poluição do planeta cansado encontrou pausa. O tom da arrogância e prepotência de muita gente se foi. Há uma consciência de finitude em nossos dias que é única. Não é que isso seja novidade, mas a verdade é que simplesmente deixamos cair no esquecimento. Mas, as últimas aulas do Dr. Corona nos fizeram recordar textos como:
Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que ali firmaste, pergunto: Que é o homem, para que com ele te importes? E o filho do homem, para que com ele te preocupes? (Sl 8.3,4)
Ele sabe do que somos formados; lembra-se de que somos pó.
A vida do homem é semelhante à relva; ele floresce como a flor do campo, que se vai quando sopra o vento e nem se sabe mais o lugar que ocupava. (Sl 103.14-16)
Ultimamente, como tenho visto gente mais reflexiva, pensativa, mais “centrada”! O desprezo dos outros diminuiu. O dinheiro, a fama, a formação, a capacidade e a posição foram todos relativizados pela nova realidade. A didática do nosso novo mestre é mais do que eficiente. Parece que todo mundo descobriu como não somos nada! Somos frágeis, simples “pó”, que não tem razão para vangloriar-se. Sem falar que o tratamento para a nossa obsessão e ansiedade pelo controle de tudo, fazendo de cada um de nós o seu próprio deus, recebeu um xeque-mate. Não há o que fazer. Podem desmarcar a agenda, esqueçam as planilhas, realinhem expectativas financeiras. Agora está mais fácil escutar Jesus:
“Por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã se preocupará consigo mesmo. Basta a cada dia o seu próprio mal”. (Mt 6.28,34).
Quanto aprendizado!
Sinceramente, os ensinos desse desconhecido mestre se mostraram incríveis. O poder e a soberania do Senhor se tornaram mais palatáveis. Os limites impostos pelo Criador às ações humanas deixaram inertes muito mal e crueldade. As guerras foram interrompidas. O terrorismo cedeu. O tráfico de drogas e de armas perdeu sua força. Prostituição infantil, escravidão humana e tráfico de órgãos foram retidos pelas últimas ações de teologia prática do Dr. Corona. Quanto alívio para milhares de pessoas! Para completar, vejamos mais um toque exegético perfeito do inusitado professor:
Venham! Vejam as obras do SENHOR, seus feitos estarrecedores na terra. Ele dá fim às guerras até os confins da terra; quebra o arco e despedaça a lança, destrói os escudos com fogo. “Parem de lutar! Saibam que eu sou Deus! Serei exaltado entre as nações, serei exaltado na terra.” (Sl 46.8-10)
E as lições não param! É muito conteúdo. É uma teologia completa, detalhada e abrangente. Assim como a igreja primitiva foi despertada de sua letargia pela perseguição (At 6-7), parece que estamos sob a mesma pedagogia. Como é difícil mudar um paradigma! Somos arraigados a padrões, fórmulas, práticas, e assim transformamos a diretriz divina em posturas mortas, petrificadas e perversas. Foi esse o conflito de Jesus com os religiosos de seu tempo. Queremos ter o domínio e o controle. Passamos a dominar e deixamos de aprender, de rir e de chorar. É a morte! Uma epidemia terrível. Como Deus trata dessa petrificação letárgica? Perguntemos ao professor. Ele nos mostrou em sua última palestra que o Deus que se revela é um Deus misterioso, que também se esconde: Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde, ó Deus e Salvador de Israel. (Is 45.15). Esse Deus é aquele que fez aliança com Abraão em meio a “densas trevas e apavorantes” (Gn 15.12), que entregou Jó à dor, sem que o pobre Jó tenha tido conhecimento do que aconteceu de fato, e que entregou seu filho Jesus à morte de cruz em nosso favor (Fp 2.8). Como entender? Os caminhos inescrutáveis de Deus (Rm 11.33) calam nossas opiniões fúteis, nossas certezas apressadas, humilham nossa sabedoria e nos ajudam a depender de Deus em mansidão e humildade.
E se somos libertados pelo Deus misterioso, que às vezes se oculta, em sua pedagogia peculiar, fica bem mais fácil quebrar as amarras dos ensinos falsos que acumulamos na vida. Que coisa bonita! Que libertação! O abraço sombrio e doloroso do Deus amoroso e misterioso que nos machuca é o que nos liberta e nos traz a cura!
Agora, conseguimos aprender. O Dr. Corona é muito capaz. Sua eficiência é única. Ele resolveu nos dar um curso intensivo de Eclesiologia. O primeiro impacto foi atingir o envolvimento de muita gente com a necessidade de reunir-se como igreja (Hb 10.25). Tantos que anteriormente desprezavam cultos e celebrações, e facilmente os trocavam pela fórmula 1, pelo futebol ou por um churrasco, agora “sentem muita falta” das reuniões da igreja. As prioridades estão sendo redescobertas! Que impressionante.
Em termos da compreensão do que é igreja, na verdade, com o tempo, parece que nós nos esquecemos de tudo. Começamos a achar que a essência da igreja se define pela instituição, sacramentos, denominação, prédio, templo sagrado, espaço físico, clube de amigos, entre outros elementos secundários. De repente, tudo isso se mostrou fragilizado. Que aula de contextualização e flexibilidade nos deu o Dr. Corona. Assim como Paulo teve que deixar a sinagoga em Éfeso e partir para o ensino da Palavra de Deus na escola de Tirano (At 19.8-10), fomos obrigados a realinhar nossa eclesiologia.
Paulo entrou na sinagoga e ali falou com liberdade durante três meses, argumentando convincentemente acerca do Reino de Deus. Mas alguns deles se endureceram e se recusaram a crer, e começaram a falar mal do Caminho diante da multidão. Paulo, então, afastou-se deles. Tomando consigo os discípulos, passou a ensinar diariamente na escola de Tirano. Isso continuou por dois anos, de forma que todos os judeus e os gregos que viviam na província da Ásia ouviram a palavra do Senhor.
Parece que Paulo, criado numa tradição cultural e religiosa muito estrita, conseguiu aprender muito com o Senhor para nos deixar um legado para o nosso entendimento a respeito da Igreja. É interessante observar que o trabalho teológico do apóstolo, seu discipulado, sua expressão de comunhão e de afeto, tudo se delineou principalmente à distância no início da expansão da fé cristã. Incrível! Sempre dedicado a suas viagens missionárias, às vezes preso, passando por perseguição, Paulo foi o principal “eclesiólogo” da fé cristã primitiva e fez o que fez sem templos, instituições denominacionais, juntas missionárias e seminários. Ele mandava “seus arquivos” de ensino, de longe: filipenses.doc, romanos.txt, efésios.docx, e até hoje “estão funcionando”. Sua “rede de transmissão” era fraca, e os pergaminhos demoravam muito para “serem baixados”. Até receberem as cartas e disseminarem seus ensinamentos demorava muito mais do que hoje! Seus discípulos se reuniam em grupos pequenos, em casas simples, mas tinham o Reino na vida e no coração, e mudaram o mundo com a mensagem do Evangelho. Muitas vezes a igreja deixa de lado a essência da fé em Cristo e diaboliza o que não deveria, como o rádio, a televisão, o celular, a tecnologia, a internete, as mídias digitais, sem usar esses recursos para o bem do Reino. Que coisa! Se a igreja que criamos está fundamentada em elementos que não subsistem, ela não permanecerá, mas, se tem fundamento na firmeza do Evangelho, e na flexibilidade de formas realinháveis, tranquilamente poderemos migrar para o contexto digital sem perder a essência da fé. Fascinante! Extraordinário!
A nova face da teologia chamou também a nossa atenção para as lições que nunca aprendemos direito. As lições de Provérbios que nos ensinam a ter uma vida pautada pela sabedoria, bom senso e atitude prevenida, estavam esquecidas. Honestidade, trabalho, previdência, generosidade e justiça marcam os conselhos dessa atitude. Em nossos dias existe tanto desperdício, tanto gasto inútil, uma imensa indústria de futilidades, enquanto tanta gente agoniza de fome e dor. E muita gente, que desfrutou de recurso mais do que suficiente, tantas vezes encontra-se em dificuldade do “dia para a noite” porque nunca alinhou a vida com a sabedoria equilibrada das Escrituras. Agora, muitos estão refletindo sobre a grande verdade de que poupar, economizar e viver na medida adequada é consciência sábia de que não temos nada sob o nosso controle, e que a vida simples nos basta. O importante é viver para amar a Deus e ao próximo.
Por fim, devo dizer que o nosso mestre teólogo tem sido indelicado, em algumas ocasiões. Talvez precise de um curso de boas maneiras. Suas lições recentes foram um “balde de água fria” no triunfalismo religioso de nossos dias. Gente que prometia “cura e prosperidade absoluta” para todos encontra-se em dificuldade. Não se ouve mais muita coisa desse perfil triunfalista. A proposta mostrou-se frágil e incapaz. A compreensão equivocada do “posso tudo naquele que me fortalece” (Fp 4.13) será realinhada pelo estudo do texto, com a ajuda do ilustre Dr. Coronavírus.
Já não há muito a dizer no desfecho desta reflexão. Mas, preciso dizer que guardo comigo uma certa decepção. Parece que o Dr. Corona não teve tão bom desempenho nos seus ensinos teológicos. Nem tudo foi eficiência. Depois de tantas lições aprendidas nesses dias, até mesmo no contexto evangélico, ainda percebo gente se ofendendo, pessoas tentando tirar “vantagem” do próximo em meio à epidemia; vejo enfrentamentos políticos desnecessários, muita coisa triste. Eu já estava tão aborrecido, quase desistindo de tudo, até que encontrei este texto das Escrituras:
No dia seguinte (Moisés) saiu e viu dois hebreus brigando. Então perguntou ao agressor: “Por que você está espancando o seu companheiro?” O homem respondeu: “Quem o nomeou líder e juiz sobre nós? Quer matar-me como matou o egípcio?” Moisés teve medo e pensou: “Com certeza tudo já foi descoberto!” Quando o faraó soube disso, procurou matar Moisés, mas este fugiu e foi morar na terra de Midiã. Ali assentou-se à beira de um poço. (Ex 2.13-15)
Se em meio à escravidão, o povo de Deus não parava de se ferir e conseguia ampliar seus problemas e sofrimentos, parece que a coisa não mudou muito. Entendi então que o mal do vírus é mais grave do que eu pensava. Agora descobri por que Moisés largou tudo e abandonou seu chamado. Sem saber o que fazer, eu me sentei e comecei a chorar. Ainda mais agora que o Dr. Corona também falhou.
Então, li um pouco mais adiante o texto até que eu pudesse me acalmar. Entre as lágrimas que prejudicavam a minha leitura, de repente descobri que Deus as estava recebendo, e não só as minhas:
Pois agora o clamor dos israelitas chegou a mim, e tenho visto como os egípcios os oprimem. Vá, pois, agora; eu o envio ao faraó para tirar do Egito o meu povo, os israelitas”. (Ex 3.9-10)
Se Deus ouviu a dor do povo que tinha falhado completamente e os libertou por meio do fracassado Moisés, que tinha fugido, e assim o Senhor construiu sua linda história de redenção depois da peste, da mortandade, da quarentena da Páscoa, da escravidão, de tanto horror no antigo Egito, ainda há esperança. É possível ir muito além da teologia do Dr. Corona. Então, respirei fundo, enxuguei as lágrimas, me levantei e saí do meu deserto, pedindo ao Deus misterioso, soberano e amoroso: Eis-me aqui, envia a mim.
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